top of page

COLUNAS

60538607_10217051531575305_6811388918194
umolharlogo2.jpg
  • 30 de dez. de 2019
  • 5 min de leitura

Eleanor Duvivier


Proust foi considerado agnóstico, por não ter diretamente declarado sua fé em Deus, ou numa realidade transcendente. Pergunto-me como o rótulo agnóstico pode ser tão simplesmente aplicado a Proust, como se ele não houvesse dito que um livro com teorias é como um objecto em que se vê a marca do preço pendurada, quer dizer, vulgar. Pois, a posição Proustiana contra teorias na literatura deve naturalmente excluir, da parte desse grande escritor, declarações objetivas sobre aquilo que não se conhece. Em outras palavras, se Proust declarasse sua fé diretamente, ao invés de transmitir a experiencia desta, e com isso tornar o leitor capaz de experimentá-la por si mesmo, ele estaria tomando uma posição teórica, quer dizer, fazendo uma afirmação que, independente de qualquer experiencia pessoal, se proporia objetiva e, portanto, cognitivamente verdadeira. Devemos lembrar que Proust viu seu leitor como o leitor de si mesmo, ou seja, como alguém que se descobre através da propria auto-descoberta do narrador da Recherche; alguém que, ao invés de aprender sobre auto-descoberta, a experimenta. Coerente com isso, Proust não afirma a existência de uma realidade transcendente, mas a transmite, através da densidade poética das suas descrições e “insights”. Nesse sentido, ele não tem fé, mas se faz fé. Proust se faz fé ao compartilhar sua experiencia, humildemente pessoal, de uma realidade atemporal e espiritual, no Le Temps Retrouvé, por exemplo. Sendo o tempo aquilo que corroi, destroe, e torna relativo tudo em que nele vive, contrariamente `as essencias, que, atemporais, são incorruptíveis e absolutas, Proust descreve o narrador de sua obra, o homem que só encontra prazer e alimento na essencia das coisas- como o homem arrancado da cronologia do tempo. "... un être qui n'aparaissait que quand, par une de ces identités entre le present et le passé, il pouvait se trouver dans le seul milieu ou il put vivre, jouir de l'essence des choses, cest-`a-dire en dehors du temps". “…um ser que só aparecia quando, através de uma dessas identidades entre o passado e o presente, ele se podia se encontrar no único meio em que podia viver, gozar a essencia das coisas, quer dizer fora do tempo.” Mas essas identidades entre passado e presente, quando Proust descreve a experiencia de uma realidade atemporal, acontece através de sensações do seu corpo. Proust, portanto, reconhece a presença e relevância do elemento físico, mencionando, no desencadear dessa experiencia, as sensações que, primeiramente experimentadas no passado, vem se intrometer no presente, deixando de pertencer tanto a um como ao outro e os identificando, quer dizer, rompendo seus limites cronológicos: L'être qui était rené en moi quand, avec un tel frémissement de bonheur, j'avais entendu le bruit common `a la fois `a la cuiller qui touche l'assiette et au marteau qui frappe sur la roue…” “…cet être là ne se nourrit que de l'essence des choses, en elles seulement il trouve sa subsistence, ses délices. O ser que renasceu em mim quando, com tal estremecer de felicidade, eu ouvi o barulho comum ao da culher que bate no prato e ao do materlo que bate na roda,”…. “este ser so se nutre da essencia das coisas, só nelas ele encontra a sua subsistência, suas delicias.” Tão celeste quanto espiritual, tal experiencia, de acôrdo com Proust, nunca pode ser alcançada pelo intelecto, ou pela vontade consciente. Dando então, na dimensão atemporal, prioridade `a concretude do elemento físico sôbre o pensamento “desincarnado”, a epifania Proustiana se reverte `a relevância da fisicalidade nessa dimensão, que, livre das limitações cronológicas, a teria eternamente presente, como uma ressurreição da carne. Ressuscitado também é o proprio tempo (principal categoria existencial, juntamente com o espaço) pois Proust mantém, na ordem atemporal, o elemento temporal purificado, como se fosse pura existencia, ou seja, existencia fora de qualquer cronologia, quando ele diz: Tant de fois, au cours de ma vie, la réalité m'avait deçu parce que, au moment `ou je la percevais, mon imagination, qui était mon seul organe pour jouir de la beauté, ne pouvait s'appliquer `a elle, en vertu de la loi inévitable qui veut qu'on ne puisse imaginer que ce qui est absent. Et voici que soudain l'effect de cette dure loi s'était trouvé neutralisé, suspendu, par un expedient merveilleux de la nature, qui avait fait miroiter une sensation- bruit de la fourchette et du marteau, même inégalité de pavés- `a la fois dans le passé, ce qui permet `a mon imagination de la goûter, et dans le présent o`u l'ébranlement effective de mes sens par le bruit, le contact, avait ajouté aux rêves de l'imagination ce dont ils sont habituellement dépourvus, l'idée d'existence et, grâce `a ce subterfuge, avait permits `a mon être d'obtenir, d'isoler, d'immobilizer- la durée d'un éclair- ce qu'il n'appréhend jamais: un peu de temps `a l'état pur. Tantas vezes, através de minha vida, a realidade me decepcionou porque, no momento em que a percebi, minha imaginação, que era meu único órgão para gozar a beleza, não podia se aplicar a ela (`a realidade), em virtude da lei inevitável de só podermos imaginar o que é ausente. E veja que de repente o efeito dessa dura lei se encontrara neutralisado, suspenso, por uma maravilhosa expedição da natureza, que fez a mesma sensação- barulho da culher e do martelo- brilhar no passado, o que permite `a minha imaginação degustá-la, e no presente, quando o sacudir de meus sentidos pelo barulho, pelo contacto, adicionou aos sonhos da imaginação aquilo de que geralmente são desprovidos, a noção de existencia e, graças a esse subterfúgio, permitiu ao meu ser obter, isolar, imobilizar-a duração de um raio- o que ele nunca experimenta: um pouco de tempo em estado puro. E o mais interessante: Mais qu'un bruit déjà entendu, qu'une odeur respirée jadis, le soient de nouveau, `a la fois dans le present et dans le passé, réels sans être actuels, idéaux sans être abstraits, aussitôt l'essence permanente et habituellement cachée des choses se trouve libérée et notre vrai moi qui, parfois depuis longtemps semblait mort mais ne l'était pas autrement, s'éveille, s'anime en recevant la céleste nourriture qui lui est apportée. Une minute affranchi de l'ordre du temps a recrée en nous pour la sentir l'homme affranchi de l'ordre du temps. Mas que um barulho já ouvido, que um odor outrora respirado, o sejam de novo, ao mesmo tempo no presente e no passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, imediatamente a essencia permanente e habitualmente escondida das coisas é liberada e o nosso verdadeiro eu, que por muito tempo parecia morto mas na verdade não estava, desperta, se anima, recebendo a nutrição celeste que lhe é trazida. Um minuto libertado da ordem do tempo recriou em nós para senti-la o homem libertado da ordem do tempo. De onde é justo concluir que, se sensações fisicas podem ser reais sem por isso estar no presente cronólogico, ideais, e, ainda assim concretas, elas estarão existindo numa dimensão que transcende a realidade. Nesse caso, o homem atemporal que as experimenta, e que recebe a nutrição celeste que lhe chega, está, mesmo que durante poucos segundos, no único “lugar” em que o elemento fisico, ressuscitado na dimensão atemporal, pode ser ideal e ao mesmo tempo concreto, quer dizer, no paraíso. Vivendo no mundo da essencia, e ainda assim da fisicalidade (que é sêlo de concretude e individualidade) esse homem só pode corresponder `a nossa alma individual. Em nome de nosso eu verdadeiro, desejo a todos muita felicidade no Natal, e muita redenção no Ano Nôvo!

  • 22 de out. de 2019
  • 6 min de leitura

Um dos meus sonhos em criança era segurar um passarinho. Pra mim eles eram como brinquedinhos vivos, nascidos do verde das árvores e do azul do céu, de uma mágica tão delicada, que a gente so podia olhar pra eles. Os que se vendia na época, tinham que ficar dentro de uma gaiola, e isso me dava aflição, mas que fazer?

Eu era ainda bem pequena e nem falava direito, quando resolvi fazer um poema, o do passarinho. Eduarda, minha irmã mais velha, era uma poeta consagrada, e achando ela o máximo, tentei ficar `a altura. Estava olhando pro céu, e de repente anunciei pra nossa mãe o meu nascente poema: “O papainho voou, Foi

pousar lá na lua…” Nesse momento, imaginei um passarinho pulando de la pra ca, no galho alto de uma árvore, e continuei: “O tabalho do papainho, é pra la e pra cá… o nome da Eduarda”

Me lembrei disso, quando o nosso passarinho Marley decolou deste mundo, ha dois dias. Ele pertencia `a minha filha Tweety, e estava conosco havia dez anos. Era um connure, nativo da America Central, e parecia um papagainho. Pegou uma gripe, e Tweety o levou pro veterinario, que recomendou um hospital

chocante de animais, numa cidade perto daqui. Pra la ele foi, e mesmo que o vet tenha avisado que ele poderia não sobreviver os exames, nosso passarinho resistiu até sedação, pra tirar raio x do pulmão. Fomos visita-lo no dia seguinte, e ele tinha melhorado muito. Pensei que breve estaria pronto pra voltar pra

casa, do jeito como ele adorou nos rever e como ficou encostando a cabecinha no rosto de Tweety. Na minha vez de segurar ele, conversamos muito. Com ele deitado na palma da minha mão de barriga pra cima, como costumava fazer, eu lhe dizia que tinha valido todo aquele esforço, e ele fechava os olhinhos.

Compramos Marley em Madison, e ele se tornou pra Tweety e eu, uma fonte de humor, comunicação, e carinho. Realizou o meu sonho de segurar um passarinho, e muito mais. Era lindo ver como um serzinho tão pequeno sacava que lhe davamos amor e correspondia, com uma infinidade de pios e expressões

diferentes. O mais incrivel é que ele até se mostrava pra gente.

Um dia em que comentavamos o seu poder de compreensão e as suas proezas, ele, que estava empoleirado no ombro de Tweety, desceu pra cama dela, onde nos sentavamos, e começou a desfilar entre nós duas, de lá pra cá, e daqui pra lá, com a cabeça erguida e o peito estufado, todo pimpão. Tava na cara que se

sentia honrado, e queria nos mostrar que merecia e entendia.

Aquele “show” era tao fofo que a gente não conseguia parar de rir, e ele de “se mostrar”. Proibi que lhe aparassem as penas das asas, pra ele poder voar pela casa, e ele adorava pousar nos lugares altos e ficar lá de cima olhando o que acontecia. Em Madison, sobreviveu a batida de uma porta no seu bico. Tinha até sangue, e tivemos que leva- lo a uma clinica de emergencia, depois da meia noite. O vet disse que ele devia estar com dor de cabeça, lhe deu um analgésico, e disse que era melhor ele passar a noite lá. Se não vingasse, o vet nos telefonaria de manhã cedo. Rezei pra que não telefonasse, e la pelas dez eu propria telefonei. Marley estava pronto pra voltar pra casa, novo em fôlha.

Depois de dois anos em Madison, resolvemos mudar pra Boulder. O vet avisou que pássaros são muito sensíveis, e que não esperassemos que Marley sobrevivesse mudar de estado, de cidade e de casa, pois até pras pessoas é estressante se mudar.


Tinhamos também um cachorro shitzu super apático, e resolvi dar pagamento extra a um dos caras da mudança, pra trazer os dois no seu caminhão numa viagem especial de Madison, quase no norte do país, a Boulder, no centro Oeste. Steve ficou chocado, tendo sempre me dito que americanos so fazem o trabalho que a sua profissão determina, e que aqui não tem essa de oferecer mais grana pros caras darem “um jeitinho”. Mas o cara da mudança adorou a proposta, e pagamos o suficiente pra ele pernoitar com os animais em algum hotel de estrada. Ele preferiu vir direto, e chegou bem antes do esperado, com as pupilas dilatadas por algum “speed” que deve ter tomado pra conseguir dirigir a noite inteira, com os bichinhos a salvo. O cachorro, porém, de esquizito que era, pirou. Entre inúmeras tentativas de fuga, só fazia lamber as paredes da casa que alugamos, com uma devoção religiosa. Nem comer ele queria.


Suas escapadas pra rua movimentada em que moràvamos eram uma calamidade, até que um dia, conseguiu fugir de vez e foi parar na Humane Society. Deixei que de la fôsse adotado. Ja tinhamos ganho a cadela do meu filho, pois ele estava acabando a universidade em Boulder e se mudando pra California. Canina excepcional, essa cadela era, porém, uma ameaça pra Marley.


Achava que ele era caça, e ficava super confusa com as broncas que levava quando tentava dar botes nele. Um dia, Tweety saiu às correrias, esquecendo que ele estava solto no seu quarto, e deixando a porta aberta. Nossa! Nala, a cadela, pràticamente mascou” o passarinho. Tweety o encontrou debaixo da mesa do computador, quase totalmente depenado, as costas em carne viva, e as asas pela metade. Quando o vi, quase tive um ataque do coração, e corremos pra emergencia de animais. A veterinária veio com aquele papo de stress, pra nos avisar que seria difícil ele sobreviver. Radiografou ele e disse que não tinha quebrado nada, mas deveria passar a noite imóvel, com uma camada de remédio nas costas que ele não podia bicar nem comer. Acho que Nala “brincou” com ele, e a voz da consciencia fez com que ela o “poupasse”, pois sua mandíbula destroe qualquer brinquedo à prova de cachorro.


A veterinária botou uma gola de plastico em volta do pescoço do passarinho, pra que não pudesse bicar o remédio, e aí sim, ele se estressou. Começou a pulular desequilibrado, tentando se livrar da gola, que eu então removi, “ He can’t have access to the medicine” a mulher avisou, enquanto eu mentalmente lhe dizia “fuck off”, e decidia manter ele entre as minhas mãos. Pra passar a noite, o alojei entre os meus seios, e ele dormiu numa ótima, enquanto eu velava. De manhã, o remédio fora absorvido, e ele pode se recuperar na gaiola. Pra ele, stress não existia.


Durante os anos aqui em Boulder, ele também sobreviveu duas tentativas de fuga, uma no inverno, e outra no verão. Tweety o viu saindo pela porta afora, e pousando la no alto do galho de uma árvore. Subindo no telhado do vizinho, ela o chamou, e ele voltou pro ombro dela. Quando isso aconteceu no inverno, ela

achou que foi por causa do frio que ele voltou, mas no verão ele agiu do mesmo modo. Muito fôfo.


O passarinho revelou coisas lindas pra gente. Morando numa sala ao lado do quarto de Tweety, ele começava a piar, assim que ela abria os olhos de manhã. Mesmo sem poder ver ou mesmo ouvi-la, ele adivinhava o momento em que ela acordava.


A percepção dos pássaros é telepática, e a inteligencia deles vem de outra dimensão. Se dar conta disso é aceitar um lindo mistério, e se livrar um pouco da auto- importancia da nossa especie humana, que pensa poder explicar totalmente os animais através da biologia e da pura necessidade de sobreviver. Essa auto-importancia detesta o mistério.


“Entendendo” e curtindo o nosso carinho, e se botando disponível de uma maneira que no elemento natural não poderia, ele confirmou que o amor é a única linguagem que desarma, cura, e fala a todos os seres. O amor, maior poder de individualização, vê em cada um, por mais pequeno que seja, o

mundo que é em si, içando-o do anonimato e o fazendo renascer.


Durante rituais de Ayahuasca aqui em casa, eu saia da sala e ia conversar com Marley, pois os animais “sentem” a fôrça do sacramento da floresta. Numa dessas vezes, eu me dei conta de como ele estava mais bonito e vistoso, tendo a extensão vermelha do seu peito tomado a forma de um coração, e ficado

mais vibrante e chamativa. Era primavera, e a natureza embelezara o passarinho pra que ficasse mais atraente, como em geral acontece com os animais nessa época de acasalamento.


Me ocorreu com a maior tristeza que nesse sentido a beleza de Marley não lhe serviria pra namorar, e fiz questão de lhe dizer que mesmo assim ela não era vã, “ Voce está lindo passarinho, não pensa que a gente não nota e não aprecia esse seu peito lindo, e todas as cores que voce tem!”


Empoleirado no alto de um armário, ele ouvia tudo com atenção. E mais um mistério: Tenho certeza que entendeu, assim como tenho certeza que, como falei pra Tweety, quando ela veio me dizer que ele tinha partido, “…Ele foi pousar lá na lua e de lá voar pro paraíso!”

  • 18 de set. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 19 de set. de 2019

Eleonora Duvivier

Numa época esquecida da humanidade, as pessoas viviam de modo bastante diferente. Em comunhão com a natureza, elas também estavam de braços abertos para o imprevisto. Ninguem planejava, ninguem se antecipava ao presente para tentar controlar o futuro, na ilusão posteriormente tao comum a todos, de estar preparado e defendido diante do inesperado. Todos eram felizes, ou se nao felizes, desanuviados. Mas havia dois primos irmãos bastante anemicos, solitarios, parecidos, e frustrados. O nome de um era Conforto, do outro Medo. Sem amigos e sem poder de comunicação, eram sombras, que viviam atras das pessoas tendo que segui-las para se movimentar. Eram alongados e pretenciosos, imaginando-se vir a ter grande poder, se a

oportunidade certa lhes fosse dada. Qual seria ela?


Sua grande ambição era se desenvolver e dominar todos os humanos. Tinham certeza de que conseguiriam, se pudessem ficar mais fortes e independentes. Sabiam que para isso, tinham que entar dentro das pessoas, pois somente no amago delas poderiam realmente crescer ao ponto de se tornarem segunda identidade de cada uma. Mas, abandonados como eram, nem conseguiam

melhor se aproximar de alguem.

Num dia ensolarado, em que todos curtiam o mar mais lindo do planeta, os dois primos quase desvaneciam na areia. O sol do meio-dia, na cabeça das pessoas, nao permitia que tivessem sombras, e os dois primos tornaram-se residuos, lembranças, ou germes de projetos futuros, agonizando.

“ Já estou cheio de ser ignorado, e de só existir como projeção escura da forma de alguém, quando a luz o ilumina”, gemeu o Mêdo.


“Temos que fazer um plano de ataque…” sugeriu o Conforto.

“Que plano? Voce é um moloide, que so gosta de almofadas e coisas que esses humanos não precisam!”

“E voce? Que so faz se gabar que consegue secar a vida de qualquer um, e esta aí nas últimas?

“Não vamos brigar, somos muito parecidos e dependemos um do outro…”

Conforto nem mais tinha forças pra falar quando, de repente, havendo o sol se aproximado mais um pouco da linha do horizonte , a projeção de uma pequena sombra se fez atrás de uma moça que passava perto do agonizante. Atraído pelo vício da interdependencia, caracteristica fundamental das sombras (como parasitas que estas são dos seres na luz) assim como marca fundamental dele proprio, o Conforto imediatamente se fundiu com ela. Sentindo-se um pouco

mais forte, disse ao Mêdo, “Moloide ou não, tenho um plano que não só vai me fortalecer, como te eleger rei, em consequencia da minha sedução!”

“Reinarei como consequencia de voce? Ta louco? Sou eu que venho primeiro! Sou eu que dei origem a voce!”

“Ao contrário! Voce vai ver que a necessidade de mim é o que dá origem a voce, e o que te faz crescer!” reclamou Confôrto.

“ Seja o que for, contanto que me tire dessa merda…”

Enraizando-se de vez na sombra da moça, o Confôrto se transformou em alucinações, que invadiram a cabeça dela. A primeira foi uma barraca colorida, que serviria como abrigo daquele sol que estava já quente demais. Antes que a moça pudesse desejar a barraca, esta se transformou numa cabana de praia, sôbre cadeiras reclinadas, separadas por uma mesinha coberta de refrescos, e forradas com colchonetes. “ é disso que todos precisamos, é isso que vai fazer a praia ficar mais agradável e macia”a moça pensou, antes de ir dormir na relva. Quando começou a sonhar, facilitou o trabalho alucinante do Conforto. Viu a casa de que passou a necessitar, com teto sobre sua cabeça pra lhe defender do vento, da chuva, e até do calor, com aquele ar refrigerado que lhe fez se perguntar como havia conseguido viver sem tudo aquilo, enquanto mais imagens de segurança e facilidade continuavam a invadir sua cabeça. Imagens de coisas

que lhe defenderiam contra as manifestaçoes da natureza, e contra o imprevisto. Imagens de aparelhos tecnológicos que poderiam prever o clima, os furacões, ajudando a humanidade a “se prevenir”, a ficar capaz de planejar!

“Como fomos tão cegos até agora?” ela se perguntou, “tenho que transmitir isso tudo aos outros, para que comecemos a fazer todas essas coisas maravilhosas!”, concluiu, com uma urgência que até então lhe fôra desconhecida.

Não demorou muito para que, depois desse “contágio” com ela, a humanidade fabricasse tudo aquilo que tinha sido miragem. Logo logo, perceberam, com muito orgulho, terem se tornado capazes de mapear seus dias, e terem criado algo chamado “Zona de Segurança” (Safety Zone) em torno de cada um. Não sairiam mais dela, pra que? Se tivessem que viajar para áreas diferentes, poderiam planejar, e desse modo, criar novas defesas. Ninguém mais seria “porra louca” como tinham sido, ninguém mais estaria exposto de peito aberto, ninguém mais confiaria no próximo, menos ainda nas surpresas de Deus, no que a Ele pertence!

Assim armados, não existiria mais nada que pudesse ser além deles, nada mais que pudesse lhes surpreender, ou que não pudessem “controlar”. O Medo, o qual pouco a pouco se fortalecera, enquanto tudo isso acontecia, tornou-se gigante. Era ele que impediria a todos ousarem sair do que fôra criado como garantia de sobrevivência. Era ele que fez o sobreviver macio e acuado ficar mais importante que o viver. E foi ele que desenvolveu a defensiva de cada pessoa ao ponto desta se transformar em agressão. Soberano, ele originou uma necessidade até então desconhecida, a necessidade de poder. Os que tivessem mais poder estariam seguros e garantidos pra sempre. Assim, ele finalmente transformou a religião, algo que havia sido espontanea e indiferenciada telepatia com os deuses, em motivo de diversidade conflitante, briga, e desconfiança.

Sentado num trono, atrás da humanidade, o Mêdo nunca conseguiu deixar de ser sombra, mas finalmente criou a guerra, assegurando pra sempre sua soberania!

O Mêdo é distância de Deus, distância de nós mesmos!

bottom of page