Dia desses “O Globo” publicou uma matéria assinada pelo repórter Felipe Grinberg, que me fez lembrar dos contos de Júlio Cortázar, o fantástico escritor argentino. A reportagem revelava furtos em série, na calada da noite, de partes de estátuas espalhadas pelas praças do Rio. Dos “Escoteiros”, na Glória, sobraram só os sapatos; a “Menina dos balões encantados”, na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, perdeu as pernas e a imagem de Noel Rosa, em Vila Isabel, amanheceu sem o braço, o copo, a garrafa e o tampo da mesa; dias depois levaram parte do corpo do garçom que compunha a cena.
De fato, seria um conto de Cortázar se os ataques fossem motivados por algum delírio pessoal ou perpetrados por integrantes de uma estranha seita, algo assim. Porém, o fim dessa história não trazia nada de fantástico. Era a miséria pura e simples ceifando a paisagem da cidade de seus adornos. Como na lei de Lavoisier, em que nada se cria, tudo se transforma, o bronze ou o ferro usado nas esculturas é vendido a ferros-velhos, derretido e revendido como matéria bruta.
Sem entrar no mérito do valor artístico das estátuas que adornam as praças do Rio – é certo que a maioria atrai mais pombos do que a admiração do cidadão –, elas fazem parte do acervo público. Gostando ou não, não temos o direito, de ignorar a escalada de furtos. Infelizmente é arraigada a crença de que o bem público é de responsabilidade da autoridade constituída. A cidade é a nossa casa e, como tal, temos compromissos com sua preservação. Somos herdeiros da paisagem urbana, com a missão de entrega-la às próximas gerações no melhor estado possível.
A cidade é também um museu vivo e dinâmico. A ocupação, o traçado e os enfeites ajudam a contar a sua história. O Rio teve o seu desenvolvimento inspirado no modelo das cidades europeias e, com grande liberdade, ao longo de sua existência, ninfas foram misturadas a imperadores engalanados e a generais em cavalos imponentes; heróis com espada em punho se tornaram vizinhos de bustos de grandes nomes das artes e das ciências e também, é importante ressaltar, de figuras sem qualquer expressão. Aliás, a relação entre imagens e lugares no Rio de Janeiro é e será sempre um mistério. Há estátuas de heróis em área comercial e de músicos eruditos, em praças militares e vice-versa. Uma mixórdia danada.
Com o início da construção do Metrô, a partir de 1970, a situação ficou ainda mais confusa: imagens foram recolocadas em outros pontos, que não os originais, o que traz o mundo fantástico de Cortázar novamente para este texto: nos últimos 40 anos, esculturas e até mesmo chafarizes andaram pelos bairros do Rio. Mas é nessa mistureba que está parte do encanto da cidade. Diferentes épocas se superpõem em sua geografia, numa espécie de narrativa de enredo de escola de samba.
Embora muito raramente me aproxime de uma placa de estátua, quando não reconheço o personagem, sinto desconforto diante de uma imagem pichada ou mal cuidada. São comuns os ataques à estátua do poeta Drumond, na Avenida Atlântica, o que me faz ter dúvidas sobre o uso da área litorânea como hall da fama de figuras do passado recente, ainda que do porte do maestro Tom Jobim ou de Caymmi, nomes com lugar assegurado no passado, presente ou futuro de nossa história. Não importa. A escultura da orla é a paisagem e ponto. Érico Veríssimo dizia que o Criador levou sete dias para fazer o mundo, mas reservou um dia inteiro só para esculpir o Rio.
Assim, se há dificuldades em manter o acervo que o passado nos legou, pra que empilhar novos ornamentos nas calçadas da cidade? As ações contra a depredação do patrimônio público, muitas vezes têm resultado em situações que tangenciam o absurdo: chafarizes são gradeados para evitar que se tornem piscinas públicas e monumentos, protegidos por cercas de ferro. Fica claro que a autoridade pública não tem projeto, processo, preocupação ou cuidado com os detalhes que adornam os lugares públicos.
Independentemente do que deva ou possa ser feito pra manter o inventário de arte urbana em bom estado, o importante é falar disso. Qualquer coisa, seja lá o que for, só tem valor quando nos lembrarmos dela. Se olharmos para uma praça e não enxergarmos seus adornos, adeus. Não que devam ser retirados da paisagem. Longe disso. A prefeitura tinha que fazer a sua parte, listando e compartilhando o conjunto de monumentos de cada bairro. Já os bairros (nós!), poderiam listar, em enquetes informais, seus mais belos ou mais feios ornamentos. Falem mal, mas falem…Se entendermos que as ruas e praças são nossas e as tratarmos, de fato, como nossas, teremos uma cidade mais bem cuidada, distante da realidade fantástica de Cortázar ou da triste realidade descrita nos “Miseráveis” de Victor Hugo.
Bruno Thys