top of page

COLUNAS

60538607_10217051531575305_6811388918194
umolharlogo2.jpg
  • 5 de set. de 2017
  • 5 min de leitura

Viro mais uma página da Recherche, maravilhada com a coragem de Proust encarar a dor; com a coragem de Proust, ponto. No seu texto, coragem, inteligencia, e amor, se identificam.

Ainda estou no aeroporto. Mas dessa vez, a segurança não me parou. Eu nao tinha,  na mala de mão, o volume único de  “A la Recherche du Temps Perdu”,  e sim um iPad, o qual, ridiculamente mais fino do que este ultimo, carrega, dentro de si, não somente a obra prima de Proust, como alguns outros livros. Com todo esse conteúdo, o tablete Apple, ridiculamente mais fino do que o volume impresso de qualquer um desses livros, não é impenetrável ao raio x, como havia sido o único tomo da Recherche, que eu geralmente carregava, como uma bíblia.  Soube isso do agente de segurança que pessoalmente examinou a minha mala de mão, na terceira vez em que não me deixaram prosseguir. Achei engraçado, e  metaforicamente adequado, que o gigante texto de Proust fosse “impenetrável” `a tecnologia de segurança, assim como o é a tantas pessoas, e ironico que, dentro de um iPad, se lhe tornasse acessível.

Na verdade, Proust originalmente queria toda a Recherche num so volume, como o que eu em geral levava na minha mala de mão, e obviamente ele tinha uma razão para isso. Ao invés de uma sequencia, com começo e fim, A la Recherche… tem a continuidade infinita de um circulo, em que qualquer parte é auto-suficiente, ao invés de simples transição, pois que no circulo,  começo e fim se encontram. Assim também,  as longas frases  Proustianas se desenvolvem numa longa sinuosidade, antes de retornar ao seu ponto original, bem ao contrário da evolução de uma linha reta que,  menor distancia entre dois pontos, não deixa de opo-los, sendo um começo, e outro, conclusão.

Com a completude e auto-suficiencia da circularidade, faz sentido poder ter o texto Proustiano por completo em nossas mãos, com todas as suas partes igualmente presentes na mesma unidade que podemos acessar e manipular, ao invés de  “sequencias” dele, em volumes que o descontinuam. Mas como lidar com a sua presença condensada e invisível, dentro de um chapado tablete eletronico?

Como Proust olharia para isso? Será que o super sensível escritor, tendo valorizado a copia individual dos livros que lia, tanto quanto o conteúdo desses proprios livros, como ele expressa ao falar daquele volume especial, em que sua mãe leu pra ele François le Champi; ao valorizar  milhōes de detalhes concretos  desse exemplar como componentes do seu significado, nas associaçōes eles lhe trazem,  com a criança que era então? Não lhe seria ofensa, ou vulgarização, enfiar a sua obra prima num tablete digital que dispensa volumes, papel, e tudo que é frio ao toque pessoal do leitor,   cada vez que reproduz alguma parte da  ficção Proustiana?

Como  Proust veria essa condensação praticamente abstrata, do seu texto, ele que era tão identificado ao coração, na sua fidelidade à concretude de cada momento  ( `a dimensao física e palpável da realidade)   a ponto de atingir a essencia, o que é imutável, através de impressōes provenientes de objetos? Através do corpo, em pouas palavras?

Proust é ambivalente, no tocante `a tecnologia. Se, por um lado, se mostra poeticamente maravilhado com ela, comparando, por exemplo, as tenefonistas,  que operavam o então recentemente descoberto telefone, `a criaturas mitológicas, ou, ainda, atribuindo também realidade mítica ao primeiro avião que  viu, sobrevoando acima do cavalo sobre o qual se encontrava, por outro lado, quando não ve dimensão poética em novas invençōes, se mostra horrorizado com elas,  como,  na vez em que, retornando, anos mais tarde, ao Bois de Boulogne, viu automóveis, ao invés das carruagens de outrora.  Nesse mesmo sentido, Proust acusa, através da sua reverenciada avó, a vulgaridade da reprodução mecanica, e a do proprio utilitarianismo, motivação sine qua non, do progresso tecnológico.

Marcel ( o narrador) e sua avó vivem no mundo da contemplação, e não no do uso; vivem na dimensão em que se respeita cada ser/objeto, em si mesmo, ao invés do que podem se prestar a nosso serviço. Desta feita, a avó prefere dar como presente, uma cadeira antiga, fragil o suficiente para nao poder ser usada, mas que, como antiguidade, estimula a imaginação; tem estórias a contar.  Nesse sentido, é justo dizer que o uso é “vulgar”, e Marcel, de fato, acusa a vulgaridade da reprodução mecanica, ao explicar que sua avó preferia lhe dar pinturas dos lugares que ele gostaria de conhecer, do que fotografias deles.

Tabletes digitais são por excelencia, objetos de reprodução mecanica. Reproduzem qualquer página de qualquer texto, no mero toque de nosso dedo, assim como, através de outro toque, a faz desaparecer, de volta `a invisibilidade, ao abandono  da sua fatia de espaço, no mundo. Nesse sentido, tal poder de reprodução corrompe, quer dizer, rouba, daquilo que reproduz, a condição mais fundamental que qualquer coisa tem  neste mundo: o direito de ocupar nele um espaço visível , enquanto existe,  e ser diretamente disponivel `a vista, e ao toque.

Quando o tablete anula  o espaço físico que um livro de tres mil páginas tomaria, reduzindo-o `a invisibilidade dentro de si, diminui, também, o tempo que se leva para ler esse livro, pois que serve ao mesmo tempo como dicionário, caderno de notas, arquivo das frases que sublinhamos, e ainda mais. Tudo isso, ainda, guardado dentro do escuro do seu “corpo”, não vem a ser acessivel `a vista, pelo toque do nosso dedo, como  páginas de papel podem ser, mas sim pela eletricidade que, igualmente invisível, serve de intermédio.

Não disponivel ao toque , a  resposta elétrica é também mais rápida do que a que se segue ao contacto físico direto, fazendo com que as páginas digitais apareçam e desapareçam num piscar de olhos, quando se menos espera, devido a algum contacto ou mero esbarro acidental da nossa pele com o video. Adeus, ritmo organico do corpo, adeus, temperatura cálida de contactos epidérmicos com o papel, adeus, associaçōes fisicas com volumes particulares.

Um monte de páginas do que leio agora se sucederam histericamente sob meus olhos, e nem bem sei onde havia parado, e o que fiz de errado… e nesses segundos, odeio meu tablete, tanto quanto a exatidão do seu mecanismo. Ainda assim, tenho que reconhecer que, graças a ele, não sou mais detida  na segurança do aeroporto, e, graças a ele também, não preciso trazer um caderno extra para minhas notas.

Em poucas palavras, tenho que reconhecer, o quanto ele é útil. Anulando o direito de cada página de um livro  ter o seu espaço visivelmente fixo, assim como diminuindo o tempo da manipulação física, e da busca de notas pessoais, ou seja la o que qualquer leitor pessoalmente requer desse livro, o tablete joga `as favas, em poucas palavras,  a concretude que forma o próprio altar da existencia, pela profana causa do puro utilitarianismo.

Acho que tenho uma ideia do que Proust pensaria disso. Entretanto, tenho que engulir a eficiencia do tablete, e a conveniencia de não mais “enguiçar” na segurança.

Desculpe-me, Marcel Proust!

 
  • 29 de ago. de 2017
  • 4 min de leitura


Depois da segunda vez em que visitei Benki, na floresta, senti mais do que nunca o “mal-estar da civilização”, não nas linhas de Freud, mas no que se refere aos limites espirituais que o mundo civilizado impõe, e que vão bem mais além do que os da simples repressão. Pra mim, a historia da civilização é a historia do medo da dor. Assim como no Admirável Mundo Novo, famosa ficção de uma sociedade super adiantada tecnologicamente, em que tudo era programado para que a dor, ou qualquer tipo de sofrimento, não pudesse existir, o próprio imprevisto saiu de cena e, com ele, as emoçōes; o que propriamente se considera “vida”.


Fora da sátira, o que acontece, em menor grau, na realidade em que vivemos, é o isolamento das pessoas dentro de zonas de segurança/conforto, “safety zones”, que a vida artificial oferece, com os limites da propriedade privada, e a programação crescente dos seus gadgets, que não somente se prestam a controlar o dia de cada um, como a espionar o do próximo. Senti-me, depois da mencionada visita a Benki, encaixotada, ou dentro de alguma embalagem protetora , aqui nos Estados Unidos. O encaixotamento resulta do confinamento aos limites das linhas retas, anti naturais e calculadas, entre calçada e rua, casa de fulano e de cicrano, pista de mão e contra mão, gramados que mesmo sem cercas são proibidos. A embalagem “protetora” é a mediação do próprio artificio, entre a pessoa e o mundo, começando pelo ar que esta respira, seja por este “ter” que ser esquentado, tão logo desponta o outono, ou refrigerado – nem bem começa qualquer verão, por mais anêmico que este seja – ou simplesmente filtrado da sua humidade, da poeira, do polen, e mil coisas que podem causar alergias. A partir da artificialização do ar, há outros milhares de engodos para amaciar a existência física. Eu os adorava, e nem vou dizer que não gosto mais deles, mas não posso deixar, agora, de me questionar sobre o que geram de medo existencial, defesa, prisão, e egoísmo, no isolamento da “proteção” que garantem.


Alex Grey, o grande artista visionário, diz, de sua experiência com entheogens, que a civilização está num estágio egocêntrico, tendo quebrado a conexão que cada ser tem com todos os outros e com a criação, e, deste estágio, as plantas visionárias e o DMT, ao expandir a consciência além dos limites do ego, recuperam não só essa conexão, como, na consciência cósmica que tudo une, o sentido do sagrado. De acordo com ele, os entheogens podem levar a cultura atual a evoluir de uma estrutura egocêntrica, na expansão da consciência que, além dos limites do ego, não deixa de ser consciência de si, ao mesmo tempo que mais centrada no mundo, para que possamos extender nosso interesse e cuidado ao todo pelo que cada um de nós é responsável. Em poucas palavras, os entheogens recuperam o sentido do sagrado, mostrando, ou devolvendo, a indentificação transpessoal que temos com a criação.


Sempre tive essa esperança, ao tomar Ayahuasca com os índios, e ouvindo Benki, acho fascinante encontrar no que ele diz, mensagem semelhante a de Alex Grey, que é filho da civilização. Pergunto-me se os que conheceram Benki, e conviveram com ele, se sentiram em cheque, diante da autenticidade que ele tem ao viver de portas abertas pra quem precisa de si, a não dar valor aos limites financeiros e materiais entre os seus semelhantes, e ao haver se dedicado ao Shamanismo, seguindo sem medo, nessa busca, depois de ameaças de madereiros e traficantes de drogas por todos os lados. Pergunto-me se esse exemplo de humildade e fé, nos faz encarar o quanto somos comprometidos, no nosso próprio egoísmo, com a direção egocêntrica que Alex Grey mencionou, e o quanto esta promove a nossa própria auto-importância. Benki nos bota em cheque, não so por não nos dedicarmos `a vida espiritual, como ele, quanto por nos sentirmos “presas” de uma serie de condicionamentos e expectativas, na defensiva causada por uma existência em grande parte programada por controles remotos, pelo imediatismo dos processos digitais, e pelas máscaras que o artifício fornece. Nos bota em cheque, em poucas palavras, por não sermos o que deveríamos ser: nus de alma, desarmados, e confiantes no próximo. A maioria de nós sabe, por experiência própria, que com nossa atitude, tanto podemos trazer `a tona o pior, quanto o melhor, do nosso semelhante. Amor gera amor, ataque gera defesa, raiva multiplica raiva, e inspiração desperta fé. A realidade é uma constante interação de tudo, e só é fixa aparentemente. Até mesmo na física quântica, se observou a influencia da presença do cientista, sobre o objeto que examina.


Conheci alguém, Lucio Costa, tão desarmado e autentico quanto Benki. A equanimidade do amor que ele transmitia fazia as pessoas, na sua companhia, sentirem um alívio como que transcendente, de serem compreendidas incondicionalmente. Uma vez, ele fora assistir blocos de rua de um carnaval, com minha mãe, que vinha a ser sua prima, e quando os dois foram assaltados por homens que, na confusão, lhes surrupiaram as carteiras, Lucio lamentou que logo naquele dia, não tinha trazido mais dinheiro, de que os ladrōes pudessem se beneficiar.


Voltando a Benki, além da importância do que ele diz sobre Ayahuasca, no que esta recupera da nossa verdade essencial e cósmica, a coexistência com ele, no seu ambiente, aponta exatamente para o que Alex Grey considerou superação da cultura egocêntrica, e desperta em nós não somente questōes éticas, em relação aos nossos semelhantes, como metafísicas, no que diz respeito ao confinamento resultante do ambiente artificial “quebrar” a conexão de cada um, com tudo e com todos.


Fiquei contente, para concluir, ao saber recentemente que Benki ganhou the Equatorial Award da UNDP!


Nem todos querem continuar cegos!

 
  • 22 de ago. de 2017
  • 3 min de leitura

Amanhã publico este texto, mas foi agora que acabei de ver o eclipse do sol, daqui de Boulder. Saía de casa com meu cachorro, lá pelas onze e meia da manhã, pensando que o fenômeno celeste ja tinha no mínimo acontecido, pois que se faz tamanha onda em torno de eventos cósmicos, dos quais, muitas vezes quase nada, ou mesmo nada, se vê deles. Se bem que, ate então, eu nunca estava nas areas geográficas "privilegiadas", mas mesmo assim, semeava-se expectativas irreais para os outros lugares. Nessas ocasiōes, a indústria se aproveita, fabricando todo tipo de parafernália temática, em torno do evento.


Disseram-me que o eclipse de hoje seria `as dez e meia da manhã, mountain time , e, na cozinha, já mais tarde que dez e meia, eu via a luz do sol lá fora, fixa e constante. Sabia que nessa area não faria noite total, mas mesmo assim, se algo pudesse ser visivel, alguma diferença haveria de se poder notar, na luminosidade do dia. Então, desincumbindo-me do interesse de "correr" atras do eclipse, fui saindo com o cachorro porta fora, e me surpreendo, quando o jardineiro logo aponta pra calçada, a beira da qual crescem várias de nossas plantas, e me diz, "Olha o eclipse..."


Nunca pensei poder ver sinal de eclipse no chão, a não ser que este fosse parte de alguma súbita escuridão. Vendo, nas sombras que vi, a mesma forma, repetida infinitamente, pensei serem estas projeçōes distorcidas das nossas folhas acima, mesmo que absolutamente diferente delas. Percebi então, que o padrão formado da repetição dessas formas aparecia justamente projetado nos intervalos de sol, entre blocos não detalhados de sombra , e que, estes sim, eram a verdadeira projeção das nossas folhas, naquele cimento. Nas areas ilumimadas, entre os blocos de sombra delas, se projetava, como havia dito o jardineiro, as sombras do próprio eclipse: as mil formas que, parecendo repetiçōes de pequenos "C"s, ou luazinhas crescentes, correspondiam, na verdade, `as fatias do sol não cobertas pela lua. Como dissera o jardineiro, naquele chão, podia ser visto o eclipse.


Por mais que haja explicaçōes para fenômenos explicáveis, e supostamente naturais, a primeira vez que a gente vê um deles, se sente diante de um milagre, como a surpresa da primeira vez, diante de um animal desconhecido. O que vi, na revelação do que eu tinha pensado ser sombra de folhas em projeção de astros acima, foi o mundo de baixo, literalmente refletir o de cima; o solo se tornar eco do cosmos. Mil eclipsesinhas no meu chão eram mil céus, sobre a minha cabeça.

Peguei correndo os óculos adequados de olhar o sol, enquanto levava o cachorro rua acima, entre exclamaçōes de maravilhamento, e pausas desajeitadas para reajustar os óculos, apreciar, registrar de qualquer jeito, no iPhone.


ree

Através dos anos, ouvi muitas coisas sobre eclipses. Geralmente, as pessoas têm mêdo, ou ficam na defensiva, talvez pelo evento concernir uma interrupção da luz emitida pelo astro rei, tanto na que v em pra terra, como no caso da que acabo de ver, quanto na que vai pra lua, quando nosso planeta se bota entre esta e o sol. Soube de gente que nesses dias, nem quis sair de casa. Alguns falaram em reajustes e/ou quebras de relaçōes, e ainda outros, em novos começos. Evito me agarrar com interpretaçōes que sirvam `a coletividade, por isso não sigo astrologia, embora nao lhe seja descrente. Mas, independente desta, quanta gente pensou que o mundo nao passaria do ano dois mil, devido `a leitura que fizeram sobre o gesto do Menino Jesus de Praga? Quantos outros, traduzindo calendários da antiguidade, e sabe-se lá o que mais, tiveram uma certeza tão fanática, quanto obssessiva, chata e derrotista, que o ano 2012 seria fatídico?


Querer prever a qualquer custo é querer se proteger do imprevisto, do que a Deus pertence . Incapaz de suportar o que está alem de si, o ego gosta de certezas, pois que estas confirmam a própria limitação da sua natureza; a incapacidade de se abandonar. Eu tinha ouvido coisas sobre o eclipse, mas só posso acreditar no que eu própria senti, do que vi, e que foi tão lindo. Olhos nos olhos, entre satélite e estrêla, na ousadia humilde da lua cobrir o sol, passando, obediente, delicada, reverente, com a harmonia languida de uma carícia que, espraiando-se nas diversas camadas do azul `a volta, não deixava de ser fiel ao contorno de seus corpos celestes, agraciando de brilho a precisão tao tenazmente redonda, do encontro de suas linhas, eu vi, muito antes de uma interrupção de luz, a privacidade da pausa de um grande ato de amor; um copular cósmico.

 
bottom of page