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COLUNAS

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  • 8 de mai. de 2018
  • 3 min de leitura

Difícil pensar em outra coisa que não ele.  Levei Bowie para passear la fora pela primeira vez, uma semana depois de ele ter tomado todas as suas  vacinas, como nos foi recomendado.  Nala e ele, cada  qual na sua coleira, que eu segurava ao mesmo tempo. Nala sempre me fazia ir devagar, porque adora cheirar a terra, a cada passo, ou as plantas, ou as pedras em que outro cachorro deixou sua “lembrança”.  Mesmo que os outros cachorros tenham deixado sua  igualmente lembrança/saudação  naqueles locais há horas, quem sabe dias, a comunicação que ela tem com cada um não deixa de ser imediata, pois que pelo olfato, assim ela também deixa sua resposta  para cada qual em cada lugarzinho, depois de te-lo aspirado por longos momentos. Ela bate o seu “papo”, `a distancia e ao mesmo tempo diretamente; pelos caminhos imediatos do corpo.

Só eu tinha saco de dar pra ela essa colher de chá e esperar o tempo que fosse preciso.  Nala é do meu filho, que mora na Califórnia. Certa vez, em que ele estava aqui e me acompanhou passeando com ela, reprovou a minha tolerância, quando me viu parar o tempo que ela queria num só lugar, obedecendo os desígnios  que ela própria decidia, “Mãe, isso é o seu   passeio, e não o dela, ela que tem que te acompanhar, em vez de voce esperar ela toda hora!”, a que respondi,  ” Acho que é o passeio dela, pois se não fosse por ela, eu nem estaria caminhando aqui fora”.

Uma vez que Bowie, cujo tamanho é um terço do de Nala, virou parte do passeio,  tudo mudou, sei la se por competição entre os dois, ou colaboração canina. Ele vai pulando pelos gramados igual a um coelho, super flexível e feliz, enquanto Nala diminui as interrupçōes no nosso passeio, andando mais depressa e parando de tanto cheirar, sem deixar, porém, de “ir ao banheiro”. Mas Bowie, extasiado com tudo que vê, não faz pipi ou cocô nem uma  vez.   Além disso, só para diante de flores, que são bem variadas no nosso caminho. Quando o vento sopra as pequenas pétalas dos lilás perfumados, que como confetes da natureza enchem o ar, espalhando-se por direçōes diferentes numa dança  só deles, que não  precisa de “carnaval”,  Bowie, extasiado, até se senta pra observar melhor. Nala então se adapta ao seu ritmo.

Pode-se perguntar como que um cachorro pode ser poeta. Do mesmo modo, ou aliás, no mesmo molde de  cristalização mental, quem está vendo a magnífica série do National Geoghraphic sobre a vida de Picasso, pode também perguntar como que um cara como ele, que em várias ocasiões tinha mais de uma mulher, e facilmente mudava de uma pra outra, dizendo-lhes muitas vezes mentiras pra encobertar o que ia fazer, podia ser um anjo.  O fato é que todas as suas mulheres não podiam se resignar a perde-lo, e a única que deixou o orgulho de lado e encarou preferir “dividir” ele com outras, se fosse o caso, a não ter nem uma parte dele, foi uma sábia. Pois Picasso amou melhor cada uma delas, mesmo que simultaneamente, do que a maioria dos homens consegue amar uma única.

Ele dava à sua arte um poder místico de exorcizão, culpando-se do que acontecia a este ou aquele amigo, em conexão com o fato de ter ou não pintado. O Picasso que ele tanto afirmava não era o Picasso egoico, e sim o cumpridor de uma vontade suprema, a vontade de Deus para ele.  Por isso, quando liga, ainda moço, a desdita de algum evento a Deus te-lo punido por não ter pintado, o cara que lhe pergunta, “Voce acha que Deus esta lá ligando que o grande Picasso não tenha feito a pintura perfeita?” deve ter a maioria das pessoas que assiste o show concordando com tal pergunta. Mas estão errados. Muitos artistas sentem um poder exorcizante no seu trabalho.

No romance mais conhecido de Charles Morgan, Lord Sparkenbroke, o personagem principal era poeta, e quando conseguia escrever, se sentia absolvido. A manifestação da criatividade, para cada pessoa criativa, é  vontade de Deus.

Assim como muitos tem direito de achar, de acôrdo com os limites da sua visão do mundo, que um cachorrinho não pode ser poeta, outros mais tem, pelo mesmo motivo, direito de interpreter como megalomania a integridade de um artista, na  certeza que tem de sua missão; de ser escolhido. 

O fato é que Picasso provou ser um gênio, com a sua produção divina, e Bowie um serzinho que reverencia a vida, com a sua inocência !

 
  • 24 de abr. de 2018
  • 3 min de leitura

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Quando ele entra correndo no meu quarto, na euforia esfuziante da  confiança plena, deixo tudo que estou fazendo- seja escrever um texto introspectivo, seja passar mecanicamente o aspirador no tapete- como que diante de uma revelação.

Passei momentos difíceis em Barcelona, com saudades dele. Embora meu marido, que bem me conhece, confessou me achar maluca o suficiente pra chegar ao ponto de cancelar a viagem por causa “dele”, ficou chocado quando sugeri voltarmos mais cedo pra casa, para que eu pudesse reencontra-lo logo. A cidade da religiosidade encantada de Gaudi, das obras mágicas de Picasso, e de tanto mais a oferecer, não me aliviava a sensação de ter me traído, por me afastar do “nosso” cachorrinho. Na verdade, ele pertence `a Olivia, nossa filha, que mora numa ala auto-suficiente da casa, contígua a nossa. Quando, de manhã, ela abre sua porta de comunicação, e logo o animalzinho, a quem deu o nome de Bowie, a precede galopando no corredor, suas patinhas macias se sucedendo, no ritmo do impulso delicado, como o do som de uma cascata aveludada, sinto ouvir a anunciação da alegria; o próprio renascer do que até então fôra um mundo sério, auto-importante, e destruidor.

Bowie é da mesma raça da cachorrinha do filme A Dama e o Vagabundo. Tem orelhas compridas de pelo longo, que ao se extender, forma cachinhos, como se ele tivesse ido ao cabelereiro. Tem também, os mesmos olhos sonhadores da Dama, o mesmo perfil e forma da boca, cuja linha cai, antes de subir nas extremidades, de modo que, olhado de frente, ele parece triste, enquanto que de perfil, é eterno sorriso. Assisti o filme de novo por causa dele, e percebi que outra característica irresistível de sua raça é o jeito como, ao encontrar algum de nós, eles pedem carinho, antes de qualquer coisa, e da maneira mais confiante. Ao invés de pular em cima da gente, logo se deitam de costas no chão, e apresentam a barriguinha.

Antes de viajar, andava pensando como sou sortuda de poder curtir um cachorrinho, sem precisar ser a responsável pelo seu treino, idas ao veterinário (embora ja o tenha levado a um deles) ou attender suas necessidades básicas, a não ser quando Olivia esta na faculdade. Ele cresce e muda, bem mais rápido do que um filhote de gente. Como que eu, sabendo disso, pude me afastar, nessa fase tão adorável da sua infância?

Mesmo que so fossemos ficar duas semanas longe, doía pensar que quando voltássemos, Bowie poderia estar irreconhecível. Maravilhada com o fato de tanta inteligência, amor, e até ironia, caber dentro de uma cabecinha tão pequena como a dele, assim como a diversidade de sentimentos, que também expressam o que ele quer de nós, se manifestar com tanta intensidade nos seus olhinhos redondos, eu não queria perder nenhuma etapa desse desenvolvimento.

Posso curtir o amor borbulhante que ele tem, a comunicação incrível que essa “criancinha” animal desenvolve com a gente a cada dia, e corresponder, sentindo, na união do mistério da sua inteligência, com o milagre do seu amor, a resposta do universo a todas as perguntas. Pois, se muitos pensam que a boa relação dos cachorros com os humanos resulta do puro instinto de sobrevivência, quer dizer, do fato de eles serem dependents de nós, deveriam notar que a alegria de um cachorrinho, na sua inocência, e independência de causa específica, expressa a entrega da confiança incondicional: A realidade é o que é, mas ele ainda brinca no paraíso. Por isso, participando dessa inocência que, tornando-o tão desarmado, é transgressão ao mundo em que se deve lutar, a gente experimenta a absoluta liberdade, que começa por nos tornar livres de nós mesmos.

 
  • 10 de abr. de 2018
  • 2 min de leitura

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Papai; esquecendo-se de si?

Cresci numa família de uma sensibilidade crítica aguçada, e sempre rica em humor.  Além disso, a crítica constante não era só dirigida a outros que não nós mesmos, bem ao contrário. A auto- sátira de todos nós era talvez ainda mais prevalente do que o ridicularizar dos outros.

Eu era uma garota considerada bonita, mas nas sequencias cômicas que Edgar desenhava em torno da minha adolescência alcoólatra, eu aparecia como um “ser” anguloso, sem formas femininas ou qualquer suavidade,  sem nada, na verdade, atraente, ainda por cima com jeito frenético, ao se encontrar sem nem mais uma garrafa de uísque, enquanto as que eu já tinha esvaziado, (e nisso Edgar exagerava a quantidade)  apareciam escondidas debaixo de minha cama. Sobre esta, eu, recostada e displicente, expressava uma alienação abusada, chamando aos gritos algum dos empregados que nos serviam, para que fosse comprar o alívio líquido cuja reserva, sabe Deus como, tinham ousado negligenciar.  Quando Edgar me mostrou os quadrinhos que desenhou, tive que rir muito, mesmo me achando feia, absurda, e patética.

Em relação aos caras de quem eu gostava então, a família, que como qualquer família esperava que o “principe encantado” viesse quebrar feitiços, era impiedosa mas sempre com humor ímpar, ainda por cima quando percebia que os rapazes desejados se vendiam caro.   Conseguiam transformar em comicidade, a rejeição que eu sentia da parte dos caras,  principalmente através das séries  que Edgar inventava em torno deles como personagens principais, e nos apelidos espirituosos que papai lhes dava.

O humor,  mais que um simples caçoar, mistura percepção pessoal e validez objetiva, imersão e distanciamento, assim como acontece com a arte, tendo, como esta,  uma validez que transcende e, assim, exorciza a polaridade do julgamento, do “ou isso”, ou aquilo”, quer dizer,  de ter que achar as pessoas ou definitivamente ruins, ou boas. Por isso, ao mesmo tempo em que eu me enturmava com a crítica feita pela família, por um lado, continuava a gostar dos tais caras, por outro,  e, como se eu fosse duas pessoas igualmente válidas, quando não ria deles, sofria pelos mesmos, do mesmo modo como também podia rir de mim mesma,  e ao mesmo tempo, me levar a sério. Devo confessar que a isso, sou grata!

Mamãe e Edgar eram mais prolíficos no “tiroteio” crítico do que papai, pois ilustravam seus “achados” com caricaturas de primeira ordem. Mas quando o “velho”, mais conciso e reservado, decidia se manifestar, em geral fazendo de si próprio, e de nós,  alvos  frequentes, a hilaridade que causava o absolvia, e ele de chato, ficava até fofo.

Na verdade, tudo que escrevi é introdução para uma das críticas mais  histericamente hilárias que fez a nós. Achando-nos “sonhadores”,  incapazes de ganhar dinheiro, e adquirindo  o hábito de se queixar de nós pra mamãe (pra quem  empurrava não só a influencia sobre nossa educação, como muitas características genéticas que desaprovava) mesmo na nossa frente, ele um dia, retirando-se, exasperado, da mesa em que acabávamos de almoçar,  jurado como era `a biologia, e suficientemente educado para jogar, ou fingir jogar, toda a causa física do nosso “problema” sobre si próprio,  se sai com essa:

” Os meus espermatozóides devem ser mesmo muito ruins! Se os que ganharam a corrida resultaram nesses filhos, imagina só o resto….”

 
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