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Acabando com o mundo material de alguém

Nunca pensei que pudesse ser tão fácil acabar com o mundo material de alguém. A gente imagina que pode ser doloroso, mas fácil, nunca. E é essa a minha descoberta mais recente.

Desde que minha mãe se foi, esperei. Todos os casos que conheço de pessoas que quiseram “queimar” esta etapa rapidamente, são ruins. Geraram mais dor, arrependimento, enfim, outras dores que a gente não precisa ter além da morte de alguém amado. Tão amado.

Resolvi que deixaria pra depois por falta de coragem e algum respeito, além do raciocínio explicado. Quando eu olhava pra uma gaveta e dava pra ver as roupas de dormir dela, me dava um aperto que ia além da dor; a partir de então sua intimidade seria cruelmente revelada contra sua vontade, de forma quase abrupta. Sempre respeitei muito a intimidade de minha mãe, a ponto de ela me achar exagerada.

E assim o tempo foi passando até a temperatura cair… Eu comecei a ver amigos em movimentos diferentes para levar roupa de frio a quem estava na rua e achei que estava na hora de deixar de ser egoísta com a minha dor e mexer nos armários a fim de dar utilidade ao que ela deixou.

Desde o início, eu tive um critério. Suas coisas não seriam dadas a qualquer pessoa, espalhadas por aí, nem jogadas dentro de uma caixa e levadas a uma igreja, por exemplo. Pensei logo nisso com os santos dela. Ela tinha um altar, que a princípio tinha apenas sua santa de devoção, Nossa Senhora das Graças, numa imagem que a acompanhava desde os 13 anos. Com o tempo, depois que ficou mais velha, ganhava muitos santos de quem viajava e algumas vezes comentou com ar irônico comigo: “Paola, quando a gente fica velha, todo mundo traz santo de presente de viagem pra gente”. Talvez porque ela tivesse tanta fé, e as pessoas a associassem sempre a isto.

Mas voltando ao seu mundo, resolvi começar num dia a noite, com tranquilidade. Separei o que iria para quem estava com frio, para quem ela gostava, para quem daria bom uso aqueles objetos, e principalmente a quem reconhecesse o respeito que estava tendo à sua figura. Vivi ótimos momentos seguidos de uma tristeza absurda. Mas as coisas têm de ter sentido na vida. Tudo tem de fazer sentido e foi esse o caminho encontrado. Sem falar que a única recomendação dada por ela nesse sentido, era a quem não dar seus pertences.

Dei o certo pras pessoas certas, disso não tenho dúvida. Com isso tive vários bons encontros onde o amor por ela era presente em mim e na pessoa amiga. Mas a estranheza maior, que ficou me martelando a cabeça, foi pensar em como se acaba com 90 anos de uma vida intensa, assim, num estalar de dedos. Eu nunca tinha tido um morto antes que fosse meu. As pessoas importantes de minha vida que se foram, meus avós e meu pai, tiveram “as suas pessoas” . Vovô o vovó tiveram a minha mãe, e meu pai, sua companheira, o que no fator dor, foi ótimo pra mim, porque me poupou de muita coisa.

Mas minha mãe era só minha, sou filha única, e protagonizamos uma relação muito intensa durante a vida, com tudo o que isso tem de melhor e de pior. Foi quem mais amei. E de repente, você senta no sofá, olha pro da frente, onde antes ela sentava e pensa que aquela história de que caixão não tem gaveta é muito maior e mais profunda do que quando a gente diz pra alguém com uma postura que merece este comentário ou de alguém que mereça.

A vida é tudo que somos. O que fazemos e principalmente nossa sensibilidade ao nosso semelhante. Ninguém veio pra ter uma bolsa Gucci. Pode ser até bom, pode até ter, mas gente tem de pensar todo dia no tamanho exato que o material tem nas nossas vidas. Nada disso é novidade pra mim, mas exterminando a vida material de minha mãe nesta encarnação, uma libriana linda, vaidosa e nunca fútil, esse sentimento me veio ainda mais, de forma avassaladora.

E não tenho dúvidas, de que mesmo tendo sido muito sofrido, foi o melhor que sua morte deixou pra mim.

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